sexta-feira, janeiro 07, 2005

Se você ainda não viu "Fahrenheit 9/11"

Bendita calhordice (4/5/03)
Luís Fernando Veríssimo

Há um certo consolo em pensar que o ataque ao Iraque foi, acima de tudo, por bons negócios. Para que firmas americanas amigas do governo pudessem lucrar reconstruindo um país que firmas amigas lucraram destruindo, e a Bechtel pudesse, finalmente, fazer o oleoduto que o Donald Rumsfeld tentou vender ao Saddam anos atrás, quando o Saddam também era amigo. Simplificações grosseiras assim ajudam porque nos eximem de pensar muito (se tudo é pelo lucro, ou tudo é pela dominação comunista do mundo, o que mais há para pensar?) mas, acima de tudo, porque nos livram dos grandes ideais e da metafísica.

Grandes ideais não são aqueles modestos que você e eu defendemos para a nossa vizinhança: justiça, igualdade, paz e o direito universal a um churrasquinho no domingo. São os dos que pensam em Geopolítica e outras palavras com maiúscula, em projetos de mil anos, no futuro de raças e na hegemonia perene de nações, ou todas aquelas coisas que cedo ou tarde acabam em crianças mortas. E a metafísica é o que as abençoa e justifica. Ao deus dos homens-bomba e ao deus dos B-52s prefiro a inspiração secular da ganância, que pelo menos é um sentimento humano, embora também mate. Um Bush imediatista entre o Tigre e o Eufrates atrás de petróleo para a sua tribo e dividendos para seus amigos é mais reconfortador do que um Bush messiânico atrás do seu Armagedão, onde certamente não sobrariam oportunidades de negócio nem para a Bechtel.

Vivas, portanto, às razões calhordas, que preservam nossa fé em algum tipo de racionalidade, mesmo calhorda. Agora se sabe que o incrível Rumsfeld era diretor da holandesa ABB na época em que sua divisão americana, com a ajuda das ligações dele no governo, vendeu à Coréia do Norte os reatores de onde sai o plutônio que transforma o país na ameaça nuclear que Rumsfeld hoje denuncia. Nenhuma contradição. Aquilo eram negócios, a ameaça de punição a um cliente rebelde também é. O objetivo então era o bolso do Rumsfeld, agora é a segurança da Humanidade, as coisas tendem a se confundir. Rumsfeld está rapidamente se transformando numa espécie de deus da hipocrisia. Que, considerando os outros disponíveis, está aos poucos se transformando no deus da minha devoção.

Mas a falta de credibilidade é ruim para os negócios. Os americanos deveriam anunciar que, se não forem encontradas armas de destruição em massa no Iraque, a guerra será desfeita e o garoto (aquele) receberá a família e os braços de volta.

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