quarta-feira, janeiro 12, 2005

Pra comparar

O come e não engorda
LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

Ninguém é mais admirado ou invejado do que o come e não engorda. Você o conhece. É o que come o dobro do que nós comemos e tem a metade da circunferência e ainda se queixa:

- Não adianta. Não consigo engordar.

O come e não engorda é meu ídolo. Só não lhe peço autógrafo por inibição. Meu sonho é emagrecer e depois nunca mais engordar, por mais que tente. Quando eu diminuir, quero ser um come e não engorda.

Não se deve confundir o come e não engorda com o enfastiado. Este pertence a outra espécie. Não é humano. Pode até ser melhor do que nós, um aperfeiçoamento, mas não é humano. Afinal, o que une a humanidade é o seu apetite comum. Não é por nada que partilhar da comida com o próximo tem sido um símbolo de concórdia desde as primeiras cavernas. Até hoje as conferências de paz se fazem em volta de uma mesa onde a comida, se não está presente, está implícita. Desconfie de enfastiado. Ele será um agente de outra galáxia ou um poço e perversões, ou as duas coisas. De qualquer maneira, mantenha-o longe das crianças. Quando encontrar alguém na frente de um prato cheio só emparelhando as ervilhas com a ponta da faca, notifique os órgãos de segurança. É um enfastiado e pode ser perigoso. Sempre achei que as pessoas que comem como um passarinho deviam ser caçadas a bodoque. O seu fastio, inclusive, é um escárnio aos que querem comer e não podem.

Já o come e não engorda compartilha do nosso apetite, só não compartilha das conseqüências. Ele repete a massa e não tem remorso. Pede mais chantilly e sua voz na treme. Molha o pão no café com leite! E ainda se queixa;

- Há 15 anos tenho o mesmo peso.

O come e não engorda só parou de mamar no peito porque proibiram a mãe de ficar junto no quartel. Quando o come e não engorda nasceu, uma estrela misteriosa apareceu no Guide Michelin de restaurantes para aquele ano. O come e não engorda caminha sobre a sauce bernaise e não afunda. Multiplica os filés de peixa à meunière e os pães de queijo. Por onde o come e não engorda passa, as ovelhas se atiram para trás e pedem "me assa!". O come e não engorda tem o segredo da Vida e da Morte e, suspeita-se, o telefone da Bruna Lombardi. E ainda se queixa:

- Tenho que tomar quatro milk-shakes entre as refeições. Dieta. Dieta! E você ali, de olho arregalado.


In "A mesa voadora", Objetiva, 2001



O Natal e o Magro-de-Ruim

RICARDO FREIRE


O fim do ano chegou - como sempre, trazendo um período de provação para todos aqueles que, como eu, estão em permanente briga com a balança. Não, o nosso problema não é resistir à inesgotável oferta de calorias desta época do ano: nós nem sequer pensamos em resistir. Nossa maior provação reside em não alimentar (ops!) maus sentimentos com relação aos felizardos que sobrevivem às festas de fim de ano sem mudar de manequim.
Como reprimir a nossa indignação contra os que conseguem chegar às férias de verão sem sinal de panetones, castanhas, nozes e farofas? Como manter o espírito natalino diante de tal estado de coisas? É difícil, mas não é impossível. Antes de mais nada, precisamos ser seletivos.
Existem pessoas que passam o tempo todo se cuidando para não engordar, coitadas, renunciando aos prazeres da mesa, pobrezinhas, malhando disciplinadamente a vida inteira, judiação!, e fazendo da contagem de calorias algo tão constante e involuntário quanto a respiração, deus-nos-livre-e-guarde. Essas pessoas merecem nosso respeito e nossa comiseração.
Existem também aquelas que simplesmente não sentem prazer com comida. Essas são iguais às que não sentem prazer com sexo, com dias ensolarados ou com letras do Chico Buarque. Gente assim não merece nosso ciúme nem nossa inveja - merece tratamento médico.
O alvo de nossa indignação deve ser ele, e apenas ele: o Magro-de-Ruim.
Você certamente conhece algum. Ou, pior ainda, alguma. O Magro-de-Ruim é aquele que come o que quiser, na quantidade que bem entender, na hora que lhe der na telha, e nunca, jamais, em hipótese nenhuma, engorda. O Magro-de-Ruim é um mau exemplo ambulante. Não há indivíduo mais nocivo à sociedade. O fato de que Magros-de-Ruins possam andar soltos por aí se empanturrando de tudo o que vêem pela frente e, mesmo assim, continuem ostentando suas cinturinhas de pilão é algo que nos revolta o estômago - sobretudo quando está vazio. A simples presença de um Magro-de-Ruim do seu lado na festa de Réveillon acaba com qualquer plano de começar um regime no primeiro dia do ano.
Outras pessoas que nascem com privilégios semelhantes, como beleza ou riqueza, costumam ser de alguma serventia para a comunidade. Os muito belos enfeitam capas de revista. Os muito ricos criam empregos. Os muito Magros-de-Ruins, contudo, não fazem nada para diminuir o abismo da desigualdade da distribuição de magreza neste país.
Mas poderiam. Não há dúvida de que a cura para o grave problema social do engorda-emagrece-engorda está em entender o segredo do funcionamento do organismo do Magro-de-Ruim. Todo Magro-de-Ruim deveria ser requisitado por lei a se submeter a baterias de estudos científicos que ajudassem o resto da humanidade - pelo menos o resto da humanidade que come - a comer, e não engordar. Onde estão as grandes empresas de biotecnologia, que não tentam decodificar o genoma do Magro-de-Ruim? É preciso declarar o Magro-de-Ruim de utilidade pública, para que seu metabolismo possa ser clonado e transplantado para homens e mulheres de bem.
Isso. Um metabolismo de Magro-de-Ruim. Já pedi ao amigo secreto e, por via das dúvidas, botei na lista do Papai Noel.


E eu aqui, comendo e engordando. E o meu irmão Pedro sofrendo porque tem o índice de gordura ABAIXO do ideal. Pode?

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