Plantão
Foram 24 horas tão ricas que será melhor narrar na ordem dos acontecimentos ou o que minha memória lembrar, o que vier primeiro.
Começando pelo homem da semana passada, que esqueci de descrever. Ele foi atendido pelo colega, referindo estar trabalhando com uma foice quando “uma bomba explodiu”. Não sabia o que havia acontecido. Havia perdido um olho na explosão e outro estava roxo e muito inchado. Havia várias lesões no rosto e couro cabeludo. Estava consciente, orientado. Foi solicitado um Raio X. De repente, nos chamaram. Estava convulsionando. O raio x mostrava múltiplos estilhaços no crânio. Parecia um bolo salpicado de confeitos prateados. “Tiro de chumbinho”, “espingarda soca-soca”, “foi tiro de doze”. Seguiu para a traumatologia em Recife com o diagnóstico de traumatismo crânio-encefálico por chumbo. Ontem soubemos que ele estava jurado de morte. Uma doze teria feito um estrago maior, e atualmente as espingardas de chumbinho têm apenas um estilhaço, são por ar comprimido: foi soca-soca, aquela espingarda que se carrega pela boca, com pólvora e múltiplas bolinhas de chumbo, pra caçar passarinho. Não sei se sobreviveu.
Ambulatório de Clínica Médica pela manhã. A maioria não era emergência. No entanto, a falta de médicos nos postos da região aumenta a demanda pro hospital. “Só tem médico de oito em oito dias”, é a frase que mais escuto dos pacientes. E uma queixa simples, solicitação de exames de rotina, receitas de medicações para diabetes ou pressão alta acabam na emergência. Pessoas com sarna, vermes, queda de cabelo, verrugas, etc. Não digo que a queixa é insignificante. Não é. É para isso que existe o programa de saúde da família. Imagine você com dor, febre, vômitos, ficar esperando enquanto o outro se consulta porque está se coçando há mais de um mês! Nos municípios que têm o PSF organizado, atendo a emergência e encaminho para o posto de saúde. É um modo de educar a população. Mas como fazer isso num local onde não há médico no posto?
Os funcionários do hospital contaram que hoje seria inaugurada uma policlínica municipal, com vários especialistas e pronto-atendimento. O prefeito, que é médico, se elegeu prometendo um hospital para a cidade. Para quê outro hospital se já existe um enorme, com convênio pelo SUS, com Pediatria, cirurgia, ortopedia, obstetrícia, etc? Falta é Atenção Primária: postos de saúde, policlínicas, laboratórios, referências médicas. Me espanta é um médico não perceber isso. É uma mania de político prometer hospital e ambulância, mas não oferecer o mínimo para que os habitantes sejam atendidos no mesmo município. Sabe por quê? É mais barato. Mais barato transferir o paciente pra capital, pro município vizinho, que arca com os custos do tratamento. A prefeitura só paga a gasolina da ambulância. Aliás, ambulância não, transporte. Raramente há oxigênio, soro, medicação. Geralmente é um carro adaptado.
Também é mais barato, a curto prazo, internar e tratar a queixa do paciente, que manter um posto de saúde, com medicação, vacina, pra prevenir complicações das doenças. Por exemplo, você tem dor de estômago. Internado uma semana, o hospital ganha dinheiro do SUS, você passa essa semana tomando remédio injetável (mais barato), fazendo a dieta correta e melhora. Tem alta e deixa o resto do tratamento pra lá até piorar de novo. Agora, no posto, você inicia logo um monte de exames (endoscopia, parasitológico de fezes, ultrassonografia), uma dieta (que a maioria dos pacientes não faz porque é muito cara) e o tratamento medicamentoso, se fornecido pelo posto e feito corretamente, deve demorar meses, se for uma gastrite. O que é mais barato? Agora conte 30 anos disso, descubra que a gastrite era causada por um H. pyllori e agora você tem um câncer de estômago. O que era mais barato mesmo?
Voltando ao plantão. Crianças com febre, vomitando. Um menino de dez anos com suspeita de hepatite medicamentosa após uso de amoxilina para amigdalite, prescrita por médico. E tem mãe que faz antibiótico no filho ao menor sinal de febre, com se fosse antitérmico. O Conselho Tutelar voltou a atacar, digo, a proteger. Dois irmãos espancados pelo pai, embriagado. A menina com traumanismo crânioencefálico, o menino com as marcas das sandálias tão nítidas nas costas que dava pra identificar que eram havaianas. Graças a Deus que o pai já havia sido examinado pelo outro médico e preso. Não queria dar de cara com ele. Soube notícias do bebezinho que socorremos há uns meses. Está com outra família. E como o mundo é pequeno, este pai de agora, é também pai da irmã mais velha daquele bebê. A mãe do bebê continua embriagada, pela rua.
Mais cedo, chegou uma mãe e uma mocinha de 14 anos para um exame “muito vergonhoso”. Ela fugiu com o circo que apareceu pela cidade e ficou quatro dias fora de casa. Quem cuidou dela foi o palhaço e, segundo ele, não teve nada com ela. “É um rapaz casado, sério, doutora.” Mas a família da moça queria uma prova por escrito da virginidade. Não foi essa semana que defloramento de menor de 14 anos deixou de ser crime grave pela Constituição?
Internamentos por Desidratação secundária a vômitos. Um casal recusou-se a internar a filhinha menor de um ano com diarréia sanguinolenta franca (você já ouviu falar em tifo?). Sempre crianças que não mamam, por que será? Até que finalmente...
Meia-noite e quarenta e nove. “Doutora, uma criança com uma diarréia”. E que diarréia. Sete evacuações desde as onze da noite. Havia vomitado mas a desidratação era tanta que não vomitava mais. Desnutrido. Cinco meses, cinco quilos. Não mamava. Mesmo que não tivessem ocorrido uns casos ultimamente, quem viu uma vez (e eu já vi vários), bate o olho e sabe: cólera. Veio da cidade vizinha e teria morrido se a mãe tivesse esperado o dia amanhecer.
Todos os auxiliares de enfermagem vieram tentar pegar uma veia, digo, duas. Ninguém conseguiu. Nem as meninas do berçário, que fazem isso em recém-nascidos. Não consegui um acesso intra-ósseo. A diarréia parecia água. Acabei levando-o pessoalmente para o hospital regional mais próximo. Mais uma pediatra e um cirurgião e muitas furadas para conseguir uma via parenteral de reidratação, mas conseguimos. E ele ficou internado.
Terminei há pouco de lavar todas as roupas, a bata e minha maleta. Já tomei uns quatro ou cinco banhos, mas o cheiro de peixe azedo continua. O mais importante eu já fiz: liguei pro meu professor e mestre, que me ensinou tudo sobre cólera, inclusive não hesitar. “Parabéns, X.”.Eu liguei pra avisar do caso e agradecer. Não merecia mesmo esses parabéns.
quarta-feira, março 02, 2005
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