Plantão de 36 horas
Vida de médico tem umas coisas que, contando, ninguém acredita. Uma moça tinha tido um abortamento, fez uma ultrassonografia e verificou que o feto permanecia no útero, embora morto. A médica recomendou uma curetagem. Foi na farmácia e a balconista falou que era só tomar um remédio que saía tudo, mas precisava de receita médica. Conversa vai, conversa vem, descubro que o tal remédio era um abortivo, que não se vende em farmácia coisa nenhuma. Só é vendido para hospitais, e a liberação é mais controlada que medicação de tarja preta. Só é usado em casos de abortamento retido, como o caso dela, e em aborto permitido por lei, como em caso de estupro (nesse caso, tem que ter autorização legal). E depois da expulsão do feto, tem que fazer curetagem. Qualquer resto que ficar, é um foco para infecção, tétano, etc.
Pois por mais que eu explicasse, ela não se convenceu. Achava que eu podia dar um jeitinho e dar o remédio, tudo para que a família não descobrisse o que estava acontecendo. Não acreditava que guardaríamos seu segredo. Foi embora.
Voltou um paciente da semana passada com broncopneumonia, trazendo um raio-x, com suspeita de tuberculose. Veio com a esposa grávida. No meio da consulta, apareceu um funcionário trazendo um presente pra mim. Era uma toalha de mão pintada por uma moça, cujo dedo eu suturei semana passada. Lembro que ela esperou mais ou menos uma hora porque a emergência estava uma loucura com os pacientes com diarréia e vomitando. Acabei fazendo a sutura em cima da mesa onde faço o atendimento.
Uma senhora diabética com os pés rachados, estava com o calcanhar inchado e vermelho. Como a médica dela avisou do perigo, qualquer ferida nos pés é motivo de cuidado e uma consulta de emergência. Examinei ambos os pés à procura de mais lesões. Orientei que não caminhasse, colocasse o pé pra cima, e fiquei na dúvida se fazia ou não antibiótico sistêmico. Não havia nem um corte, propriamente dito. resolvi fazer. Também prescrevi uma antitetânica e pedi que voltasse no dia seguinte. Com pé de diabético não se brinca.
A recepcionista pediu que visse uma parente dela, que estava com muita dor e uns carocinhos nas costas. Era herpes zoster, o popular cobreiro. Quem tem zoster teve catapora em algum momento da vida e o vírus ficou por ali, esperando o organismo dar bobeira. Um câncer, AIDS, diabetes, um stress violento, uma exposição prolongada ao sol são bons motivos. Herpes zoster e herpes simples não são as mesma coisa, são vírus diferentes. O perigo de quem está com a lesão do cobreiro é que transmite o vírus da catapora, portanto, nada de contato com mulheres grávidas e com pessoas que não tiveram catapora. Esse isolamento só é necessário enquanto existem as bolhinhas. Depois que a lesão cicatriza, vida normal.
Existe uma expressão médica, na verdade uma entidade patológica: o paciente poliqueixoso. É aquele que se você perguntar 'o que você está sentindo?', pode ter certeza que ele vai se queixar de cada partezinha do corpo. Talvez isso tenha ver com a necessidade de atenção, quadros depressivos e o fato de ser difícil conseguir uma consulta médica. Trata-se de aproveitar a oportunidade. Em todo plantão chega pelo menos um. A desse plantão tinha uma dor de cabeça há três meses, desde uma pancada na nuca, uma dor no pé da barriga há dois meses, uma diarréia com sangue há duas semanas... Dá pra ficar doente só de ouvir.
Chegou uma senhora de 99 anos com fratura de colo de fêmur. Estava tentando fugir de casa e caiu. Pois você acredita que ela pediu à bisneta para ajudá-la a fugir do hospital, enquanto estava na ambulância? Ainda paquerou com o técnico do raio-x! sem falar no garoto de 14 anos com uma crise de labirintite porque tomou refrigerante demais.
A noite foi mais tranquila, sem internamentos, porque as cirurgias estavam suspensas. Os anestesistas não foram trabalhar devido ao atraso de pagamento. Só apareceu um velhinho, que tinha sido transferido há uns cinco dias, porque não tinha condições de operar a fratura de fêmur. Reconheci-o na hora porque ele tem hanseníase, mas não é por isso que a cirurgia foi contra-indicada. Tive pena dele, sendo levado de lá pra cá, sem que se resolva o problema.
domingo, março 20, 2005
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário