domingo, março 20, 2005

Plantão da segunda

Numa palavra: miserável. Uma das pediatras do ambulatório está de férias por 15 dias. Atendi mais de 60 pessoas, com certeza. Meu colega atendeu mais 90. Atendi menos porque internei muita gente e internar demorar uma eternidade. Foram uns oito ou nove no total.

Lembra do que falei sobre atenção básica e que se acaba internando porque é mais rápido pra conseguir os exames? Pois é. Uma moça tendo cólicas renais direto, mesmo medicada e sem conseguir fazer uma ultrassonografia. Internada. Um bebê de cinco meses, em aleitamento materno exclusivo, apresentando sangue na urina. A mãe é agente de saúde e trouxe assim que viu. Como infecção urinária é um risco nos menores de seis meses, foi internada também.

Uma moça com hepatite, em acompanhamento ambulatorial, voltou com os exames de controle, para saber se podia voltar a trabalhar. Justamente o exame mais importante não foi feito. Como é pelo laboratório público, vai demorar pelo menos mais uma semana pra saber se ela pode ter alta. E isso porque eu pedi "urgente"...

Na hora do jantar chegou uma criança de um ano queimada, num acidente de moto. O próprio pai o colocou na moto e saiu pra dar uma volta. O cano de escape queimou a barriga e as pernas. Queimaduras de primeiro e segundo graus. Foi internada não devido à extensão dos danos, mas porque a família mora num sítio e não poderia vir todos os dias ao hospital para os curativos.

Uma auxiliar de enfermagem pediu para ver uma tia de 68 anos que estava com diarréia. Aliás, atendi mais de uma criança com febre, vômitos e garganta inflamada. Deve ser a virose da estação.

Atendi um garoto chamado, pasmem, Rubens Barrichello de Souza, ou da Silva, alguma coisa assim. Mães!

Uma senhora com uma crise hipertensiva, a avó daquela menininha que nasceu cega em um dos meus plantões. Soube que ela está crescendo é muito sorridente. Infelizmente, ela nasceu sem um dos olhos e o tecido que existe na órbita deve ser retirado, do contrário, vai cancerizar. Mas a mãe não quer. Preciso convencê-la e logo.

Um garotinho de oito anos havia bebido água da torneira entre duas e cinco da tarde. Às sete da noite a diarréia começou com vômitos. Eram umas dez e meia, e ele já não sabia quantas vezes havia ido ao banheiro.Parecia que a noite estava pra começar. Coloquei-o para hidratar, mas os vômitos persistiram. Depois de umas três horas, ele parou de vomitar e não havia reinicado a diarréia. Mas alguma coisa não batia para mim. Chamei a pediatra da maternidade, pedindo milhares de desculpas por acordá-la. Afinal, o plantão era meu e ela só estava dormindo no hospital para fazer o ambulatório no dia seguinte.
Uma atitude decente, e rara, entre médicos é saber até onde você sabe. Depois daquele garotinho com cólera, eu dei uma estudada legal, mas o quadro não era característico e quase todos o casos que acompanhei eram de adultos. Essa pediatra trabalhou na epidemia de cólera no estado. Eu precisava de uma segunda opinião. Ela achou que não era cólera, mas concordou em interná-lo e observar. Eram 2:45 quando deixei-o na enfermaria. Meu horário acabava às três. Boa noite.

3:20 h. "Doutora, a enfermeira da Pediatria quer falar com a senhora". Como eu havia instalado dois soros, uma em cada braço, imaginei que ela quisesse tirar um. Ledo engano. A diarréia havia recomeçado, líquida, tipo água de arroz, com cheiro de peixe. Num volume e frequência assustadores. Era cólera. Difícil calcular a reposição da água perdida. A mãe do menino estava apavorada. "Ele já fez xixi três vezes". Graças a Deus! A melhor maneira de avaliar se uma pessoa está hidratada é a diurese. O garoto tinha até lágrimas! Às cinco da manhã acordei a pediatra para avisar da evolução do caso, porque tinha que pegar o ônibus. Interessante: a mãe do garoto foi quem levou a menininha cega ao IMIP (Instituto materno-infantil de Pernambuco), é amiga da família e ensinou como desenrolar a marcação de médicos e exames.

Peguei o ônibos às seis. Dormi meia hora. Fui ao médico. Só pude me deitar às três da tarde. Vida de médico.

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