Mais 24 horas
Após uma noite razoável de sono, voltei para mais 24 horas no mesmo hospital. Foram 27 atendimentos pelo SUS, e mais as consultas pelos planos de saúde. Sem falar que os pacientes internos não foram vistos pela diarista. Simplesmente ela não foi. Claro que caiu tudo nas minhas costas, e não vão pagar um extra por isso. Particularmente, uma paciente que estava de alta e a família não queria levá-la embora. A alta é uma decisão do médico que acompanha o paciente, no caso, a diarista. Foi mais de uma hora para fazê-los entender que a paciente só ficaria o tempo necessário para estabilizar o quadro, não podia ficar até estar completamente curada. O risco de uma infecção hospitalar suplantava o benefício que ela teria permanecendo lá. Uma paciente que iria continuar apenas fazendo soro caseiro e com uma dieta reforçada, sem vômitos, febre, não teria necessidade de permanecer. Fora internada devido a desidratação por diarréia e já estava lá há uma semana, e só permaneceu tanto tempo porque é idosa. A anemia leve que tem será tratada por meses. Será que eles esperavam que ela ficasse internada todo esse tempo? Talvez quisessem se livrar de um problema. Acabei elaborando até um resumo de alta para levarem para o médico do posto. Um dos netos pediu e é um direito de todo paciente receber um resumo de alta. É só solicitar. O médico tem obrigação de dar e não pode cobrar por isso. Copiei até os resultados dos exames.
O rapaz do rosto inchado trouxe os exames, que confirmaram uma síndrome nefrótica. O inchaço diminuiu só em parar de comer sal. Vai voltar semana que vem para acompanhamento. Duas mulheres chegaram quase na mesma hora com torcicolo. Uma moça cortou a mão lavando um copo. Uma menina cortou o pé no acampamento da Semana Santa.
Vieram os habituais com febre, dor, tosse. Vieram os pacientes do cirurgião que faltou ao ambulatório e precisavam de revisão após as cirurgias. O paciente que havia retirado o aparelho de fixação externa do fêmur voltou para ser internado com osteomielite. foi o único internamento do dia.
Houve vários casos de pacientes internos precisando de analgésicos, antieméticos e tranquilizantes não prescritos pelos médicos que os acompanham. Algum dia alguém vai entender que o plantonista está ali para ver apenas as intercorrências do plantão e não para fazer o serviço do médico que acompanha o paciente.
O melhor momento do dia foi um senhor com dor abdominal. É um alcoólico anônimo e ficamos conversando. "O A.A. salvou minha vida", me disse. Contou como agora está levando o irmão para as reuniões. Está sóbrio há dois anos e reconstruiu a vida familiar e profissional.
O momento irreal foi um paciente com a história de ser médico sem ter estudado, já nasceu médico. Voltou semana passada de Roma onde visitou o Papa João Paulo II e João de Deus (um político daqui). É presidente do estados do exército do Brasil. Aprendeu a ler sozinho (a letra é linda, mas ele não escreve uma palavra, são agrupamentos de símbolos). Tem uma doença que é segredo porque tem a ver com vidas passadas. Até ele falar do papa eu podia acreditar, depois ficou difícil, né?
Lembrei da paciente no hospital psiquiátrico que estava internada porque o marido tinha atirado no presidente Fernando Henrique e o filho dela havia salvado-o porque dirigia a ambulância da cidade. Na ficha dessa paciente constava que havia chegado em tal surto megalomaníaco que estava aos gritos na admissão dizendo que era amiga de Lampião e que se não a soltassem ele vinha derrubar o hospital. o interessante é que essas pessoas não mentem. Elas acreditam no que dizem. É tudo real para eles. Não podemos dizer que aquilo não existe.
Concordei com tudo que o "médico e amigo do papa" me disse. Como a queixa não tinha a ver com o quadro psiquiátrico, prescrevi um sintomático e o liberei. Infelizmente ele estava sozinho, e não estava em surto. A lei proíbe que qualquer paciente seja detido sem sua permissão, exceto se não estiver em seu juízo normal ou for portador de uma doença que ameace a população. Mesmo um paciente psiquiátrico só pode ser detido por 24 horas, depois desse prazo deve ser novamente avaliado e por mais de um médico. Isso impede aqueles internamentos arbitrários do passado, onde muitos foram taxados de loucos enquanto a família se apropriava do dinheiro.
sexta-feira, março 25, 2005
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