sábado, abril 02, 2005

Plantão da quinta-feira
O dia começou com uma moça de 16 anos com paralisia cerebral. Estava vomitando sem parar há doze horas, já havia sido socorrida mais cedo em outra emergência mas piorara de novo. Pacientes acamados como ela têm grande dificuldade de manter as vias aéreas livres de secreção. De fato, há dois meses ela fora internada com uma pneumonia e parecia que estava com outra. Em pacientes debilitados assim, não existe um quadro clínico característico. Pode não haver tosse nem febre. É comum em idosos a pneumonia se manifestar apenas por falta de apetite e queda do estado geral. Crianças podem ter apenas a frequência respiratória aumentada. Essa paciente tinha febre e a infeliz coincidência de ser alérgica a dipirona. Não havia outro antitérmico na emergência, tivemos que usar o paracetamol que a mãe dela trouxera, e só depois de controlar os vômitos.
Um paciente com cirrose voltou, com a barriga cheia de líquido, as pernas inchadas. Foi internado.
Uma senhora com náuseas e dor abdominal há quatro dias. Fez e comeu todas as comidas com côco na Semana Santa, um costume do estado de Pernambuco. Havia tirado a vesícula biliar há uns anos e sabia que não podia comer coisas gordurosas. “É só uma vez por ano, doutora”. “Então uma vez por ano você vem aqui do mesmo jeito”, retruquei. Ela era amiga daquele senhor que chegou morto há quinze dias, cuja esposa era louca por ele. A necropsia confirmou que foi um infarto fulminante.
O barbeiro que foi atendido no último sábado com a boca torta voltou pra me agradecer. O neurologista confirmou que era um AVCI (acidente vascular cerebral isquêmico). Foi internado por dois dias, mas não se descobriu a causa, porque ele não tem hipertensão. Os movimentos da face estão voltando ao normal.
Uma mocinha veio fazer a drenagem de “um furúnculo”. Era um abscesso na nádega. Depois de explicar que anestesia não age em locais inflamados, fiz a incisão. Um pus malcheiroso e abundante saiu, e parecia que não ia parar mais. Era um super abscesso. Afinal, consegui tirar tudo, fiz um curativo e recomendei que voltasse no dia seguinte para reavaliação. Ela já estava tomando antibiótico e antiinflamatório.
Quando entrei na sala de medicações, havia uma paciente sangrando. Havia feito uma cirurgia ortopédica no tornozelo e um caroço se formou. O ortopedista supôs, muito sensatamente, que fosse um abscesso e puncionou o local com uma agulha para confirmar. Era uma formação vascular sobre o local da cirurgia. O chão estava cheio de sangue, a paciente apavorada e a auxiliar de enfermagem sozinha. Havia poucos pacotes de gaze no posto da emergência porque eu havia utilizado quase tudo na drenagem. Pedi que a auxiliar fosse buscar mais. O ortopedista veio para ajudar.
Nesse momento, o rapaz com asma do dia anterior entrou quase roxo, de tão cansado. Estava queimando de febre. Tinha pneumonia também, que não deu pra identificar devido ao chiado da asma. Por isso que ele não melhorava. Ele precisava de oxigênio e alguma medicação que o ajudasse a respirar. A auxiliar ainda não tinha voltado. Coloquei-o para nebulizar e comecei a preparar uma medicação endovenosa eu mesma. Nesse momento, ouvi um barulho às minhas costas. Era o acompanhante da paciente que havia desmaiado sobre a mesma e derrubado-a da cadeira de rodas. Era uma cena dantesca. A senhora aos gritos no chão, com a cadeira e o rapaz caídos sobre ela, o médico de luvas, ainda segurando o tornozelo para estancar o sangramento, a auxiliar que havia acabo de voltar, com as mãos cheias de materiais de curativo, e o rapaz com pneumonia ajoelhado no chão porque não conseguia respirar sentado. A mulher gritava “Quebrei o pé de novo”, e a sala cheirava a sangue e ao pus que ainda não havia sido limpo. E a sala cheia de pacientes tomando soro, em observação para baixar a pressão(!), aguardando para fazer curativos. E o telefone tocando pra avisar que havia um ambulância com pacientes para internar, que precisava ser liberada.
Minha prioridade era o rapaz. Já havia um médico com a paciente e se ela havia mesmo quebrado o pé, não ia morrer ali mesmo. Terminei de preparar a medicação e puncionei uma veia. Outro auxiliar veio dar uma força, a servente apareceu, o sangramento parou com a sutura do local. Ainda bem que o médico havia feito uma punção, eu nunca tinha visto um procedimento tão simples complicar tanto. Agora eu precisava cuidar da pressão alta da paciente, que não havia quebrado o pé, mas estava histérica, com razão. Fiz a medicação necessária, internei o rapaz e os dois pacientes com fraturas que haviam chegado durante a confusão. Aproveitei e internei a mocinha com pneumonia, que havia parado de vomitar.
O rapaz da dor de garganta voltou e agora havia pus na garganta e o hemograma confirmou infecção bacteriana. Os médicos erram também. Prescrevi um antibiótico.
Outra situação digna da TV aconteceu mais tarde. Numa consulta na sala de atendimento particular e de planos de saúde, uma paciente apresentava simtomas de uma infecção urinária. Eu havia acabado de explicar o que era e como tratar, quando o celular tocou. Era Ado. ‘Rápido, estou atendendo”. A recepcionista entrou sala adentro: “Doutora, uma emergência”. Murmurei um “desculpe” para a paciente e comecei a correr pelo hospital, ainda conversando no celular, ‘tenho uma emergência”, deu pra dizer e desligar. A urgência era uma senhora, que havia voltado para a revisão de um cirurgia e havia desmaiado na sala de espera. Estava com uma hipoglicemia. Lembrei dela porque tem catarata, não enxerga além de vultos, mas não dá pra perceber de jeito nenhum. Fui eu quem a internei. Enquanto eu a socorria, telefonaram pra liberar outra ambulância, com, uma velhinha com fratura de fêmur.
Retornei para terminar a consulta, solicitei exames e liberei a paciente. A senhora havia melhorado, procurei a velhinha com fratura para interná-la, mas como ela não tinha família e o hospital não permite que uma pessoa daquela idade fique sem acompanhante, ela foi embora. Fiz prescrições das medicações que faltavam, ainda daquela hora na confusão e voltei pro quarto. Assim que sentei o telefone tocou.
Era uma moça com dor de estômago, daquelas bem rebeldes, que quando a gente lista os alimentos proibidos (refrigerante, café, chocolate, frituras) pergunta pra gente “E O QUE EU VOU COMER?”. Quem come errado tem dificuldade de entender que os alimentos comestíveis são um conjunto e os alimentos restritos, um subconjunto. Se você tira o subconjunto, o resto é permitido. Nesse instante, o telefone tocou. Era uma médica avisando que estava enviando mais uma senhora com fratura de fêmur. Atitude rara e educada.
A moça do abscesso no abdome voltou para retirar o dreno. É impressionante como a dor praticamente não existia após vinte e quatro horas da drenagem. Agora ela precisa tratar a escabiose.
Virei médica da equipe. Todos os funcionários do plantão vêm dar uma palavrinha comigo, mostrar um exame. Dada a quantidade de médicos no hospital, imagino que não seja pela minha capacidade profissional, mas porque gosto de escutar as pessoas. Já percebeu que a maioria dos médicos nem olha pra cara do paciente?

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