Plantão da quinta-feira
O dia começou às cinco da manhã e não parou mais. Sabe quando você não dorme muito e não te deixam em paz? Foi hoje. Como sempre, meus colegas internam os pacientes e não prescrevem medicação para dor (numa fratura de fêmur), para vômitos (num pós-operatório), querem que eu dê alta pra não ter que irem lá. É um tal de “Doutora, a senhora pode assinar a ordem pra tirar a sonda desse paciente? Pode assinar essa alta? Pode prescrever alguma coisa pra dor porque o paciente está morrendo e não tem ordem nenhuma?”. Hoje eu me enchi e registrei esses pedidos no livro do plantão. Escrevi textualmente que “os colegas cirurgiões acompanhassem seus pacientes durante a semana”. Já basta ter que evoluir uns trinta pacientes no plantão do sábado. Como é um (mau) hábito deles, provavelmente serei despedida, ou pelo menos advertida. Iteressante é que são pacientes deles, que eles operaram. Ou será que eles aprenderam que o cirurgião apenas existe dentro da sala de cirurgia?
Uma senhora que fez a cirurgia de uma fratura do tornozelo voltou, com muita dor e drenagem purulenta da ferida operatória. Osteomielite. Encaminhei-a para uma emergência grande apenas para trazer uma ordem de internação. Para quê essa burocracia? Ela é nossa paciente, foi operada neste serviço e tem uma complicação operatória. Precisava ir só para o médico ver o que eu já vi?
Um rapaz veio muito revoltado com a médica da outra emergência porque há três dias que tem febre e vômitos e não passam mais que paracetamol. Acontece que solicitaram exames para descobrir o que ele tem exatamente e ele não fez. O exame físico não mostrava nada de errado com os pulmões, pressão, garganta, abdome. Acaso há como adivinhar? Muitas doenças começam iguais e com o passar dos dias vão surgindo outros sintomas. Aquilo podia ser uma hepatite, uma meningite, uma leptospirose... Saiu de lá com a prescrição de paracetamol após hidratação venosa e a solicitação dos mesmos exames. Não se pode sair passando uma porção de remédios sem uma hipótese diagnóstica. Uma das maiores máximas da História pertence a D. João VI e vale para muita coisa em doenças “Quando não sabemos o que fazer é melhor não fazermos nada”, pelo menos enquanto você investiga e mantém o paciente vivo e confortável.
Assim que tive uma folga, convoquei a estagiária de enfermagem para fazer uma superlimpeza na perna daquela senhora. O debridamento consiste em remover todo o tecido necrosado até permanecer apenas tecido vivo. Não é uma tarela agradável, longe disso. Principalmente porque você só sabe que o tecido está vivo se dói e sangra. Levou uns quarenta minutos e algum sofrimento pra paciente, mas agora a medicação aplicada ia fazer efeito. Interessante é que apesar do sofrimento, eu ouvi “obrigada, meu amor”, da paciente. Vai entender.
Quando eu estava terminando o curativo, a auxiliar de enfermagem da emergência veio avisar que havia uma paciente para atender e que a filha dela estava reclamando que não tinha médico no hospital e que ali se morria à mingua, apesar de avisada que eu estava num procedimento na enfermaria. “Ela deve estar em alguma consulta particular”. Interessante é que o local de consultas particulares é distante da enfermaria, se fosse mentira, como eu ia sair do corredor da enfermaria? Sem falar que eu atendo quem chegar primeiro, SUS, particular ou plano de saúde. Terminei o curativo e fui até lá.
“Boa tarde, é a senhora que está tratando mal a auxiliar?”
Ela sorriu sem graça. “Eu não”.
“Se só tem essa paciente para atender e ela teve que me chamar na enfermaria, quem mais seria?”
“Pois então ela é uma mentirosa, porque eu não tratei ela mal. Você vai atender minha mãe ou não? Porque ela está passando mal”, perguntou quase me engolindo.
“É pra isso que eu vim, mas se a senhora falou com minha minha auxiliar desse jeito, então tratou mal sim, porque está gritando comigo”.
“Não estou!”
“Está. Eu vou atender sua mãe, mas a senhora espere lá fora”.
“Eu não vou sair daqui. É minha mãe”
“A senhora está me agredindo. Espere lá fora.”
“Se é assim não vai atender não. Pegue seu atendimento e soque...” e saíram.
De anjo a demônio em dez minutos.
Uma mocinha veio se consultar e a mãe me contou o final da história de outro plantão. O tio da menina bebe demais e tentamos interná-lo num hospital psiquiátrico. Para isso fiz sedação maciça. Pois o irmão dele, que decididamente não bate bem, comentou “vamos aproveitar que ele não acorda e apertar o pescoço dele até matar, que ele nem sente”. Inacreditável.
Quando terminei essa consulta, a paciente da osteomielite estava de volta. “Minha doutora linda, quanto homem bonito naquele hospital”. Eram os residentes de Medicina. E ela tem uns 80 anos. Apenas o corpo envelhece, e olhar não tira pedaço.
Mais uma fratura de fêmur, uma vo curativo na perna da paciente *(já havia menos dor e o aspecto era melhor), uma horinha tranquila e eu já estava fechando o plantão quando chegou uma senhora de 62 anos desmaiada. Ela estava tão mal que pensei que havia morrido. É hipertensa e diabética, e o coração não conseguiu bombear o sangue dos pulmões, enchendo-os de líquuido. Um edema agudo pulmonar. Existem duas grandes emergências em Cardiologia: infarto e edema agudo. Quando confirmei o que era, saí de perto e fui ajudar a preparar a medicação. De repente, ouvi “não tem médico neste hospital, não?”. Era o neto da paciente.
“Tem. Sou eu.”
“E só tem você?”
“Só. E estou preparando a medicação de sua avó. Se você ficar aqui gritando, ela vai morrer”
“Você vai matar minhar avó? Isso é um absurdo. Você não sabe nada. Sua imbecil!” e saiu.
Pegamos uma veia. A veia estourou. Eu precisava fazer a medicação para drenar o líquido dos pulmões, melhorar a função cardíaca, baixar a pressão, acalmar a paciente. E a filha dela ainda tentando justificar a atitude do filho, que era nervosismo, etc. Nisso, chegou meu colega da noite, que após muita dificuldade conseguiu uma acesso venoso central. Enquanto isso, sentamos a paciente, fizemos oxigêncio, medicação sublingual e ela foi melhorando. Pedi uma ambulância para transferí-la para uma emergência cardiológica porque o quadro ainda era grave. Ânimos acalmados, consegui explicar para os parentes por que não adiantava eu ficar do lado da paciente só olhando. Tanto precisava de gente pra preparar tanta medicação, que vieram mais duas auxiliares e éramos dois médicos. O rapaz pediu desculpas, eu aceitei e fui-me embora debaixo de chuva mesmo, antes que a velhinha batesse as botas e ele mudasse de idéia.
domingo, abril 10, 2005
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