quinta-feira, maio 05, 2005

Plantão de segunda-feira
Pra variar, eu e Deus. Continuo sem colega durante o dia. Não adianta não marcar fichas de ambulatório porque não é feita qualquer triagem. Se num dia normal eu atendo 63, nesse dia eu atendi 72, “só de urgência”.
Havia umas vinte fichas. Meu segundo paciente foi um senhor de 96 anos que havia caído há 3 dias, queixando de uma dor nas costas e sem conseguir andar. Solicitei um raio-x do quadril direito, que confirmou uma fratura de colo de fêmur. Mais uns pacientes e uma senhora de 88 anos com diarréia há 15 dias que só veio porque a família insistiu muito. Estava desidratada, mas negava vômitos ou febre. Decidi iniciar hidratação venosa e observar. Uma mocinha com tontura e hipotensão, negava uso de drogas, gravidez, a ficha registrava outras crises semelhantes. Iniciei hidratação venosa.
Urgência na Clínica Médica. Um senhor havia parado de respirar por uns minutos, melhorou após administração de oxigênio. Conversei com a família, registrei no prontuário e voltei pra emergência.
Incrível a quantidade de gente que se acumula em vinte minutos. Uma senhora havia caído em casa e se queixava de dor no ombro direito. Fiz um antiinflamatório e solicitei um raio-x. Fui chamar o próximo e um rapaz foi dizendo que precisava falar comigo se eu era a plantonista. Enquanto isso, um senhor entrou consultório adentro. “O senhor é o próximo paciente?”. “Não, eu vou falar com a senhora”. “O senhor espere lá fora”. O rapaz gritou que a irmã dele estava internada e ia morrer lá dentro. Tentei explicar que não conhecia os pacientes internos, que não acompanhava esses pacientes, que ele devia procurar o médico que acompanhava a irmã dele. O tal senhor veio com dedo levantado me ameaçando. Nesse instante, o enfemeiro-chefe, que ouvira a confusão, entrou e me socorreu. Atrás dele, um policial, amigo da auxiliar de enfermagem. Devagar, conseguimos colocar o homem pra fora e o rapaz para dentro. O enfemeiro foi ver a situação da moça e voltei a atender.
O senhor da fratura voltou, o ortopedista mandou internar. Pedi que esperasse um pouqinho porque com aquilo tudo havia juntado mais gente. Uma porção deles com vômitos, febre e diarréia. Um homem diabético, 44 anos, com múltiplas feridas pelo corpo e um dedo do pé com necrose. Internado. O enfemeiro voltou e confirmou que a moça estava mal. Internada há 12 dias, não falava nem andava mais. O raio-x, embora com laudo normal, sugeria tuberculose. Concordei com a família que precisava transferir e expliquei para o rapaz que iria tentar a vaga. Ainda bem que conseguimos. Preenchi a papelada e voltei novamente pra emergência.
Outra senhora diabética, usuária de insulina, também com feridas nos pés foi internada. Havia tido alta há uns 15 dias. A senhora da dor no ombro voltou e o raio-x confirmou uma fratura da cabeça do úmero. Procurei o ortopedista e ele estava almoçando. Como eu não sabia se era uma cirurgia urgente, resolvi ir perguntar pessoalmente e aproveitar pra almoçar (nem sei há quanto tempo eu não almoçava naquele plantão antes das duas da tarde).
O colega garantiu que dava pra fazer os exames com calma e marcar a cirurgia daí há uns dias, não precisava internar logo (ainda bem , menos trabalho). Na volta pra emergência, quinze minutos depois, a senhora de 88 anos estava com febre e a moça com hipotensão continuava mal. Resolvi internar a senhora. Apareceu uma paciente antiga trazendo um presente, um pacote de queijo, explicando que não havia conseguido uma ficha pra mim, só tinha vindo trazer o presente. Fiquei com muita pena e preocupada, porque ela tem uma suspeita de câncer e estamos investigando há semanas. Resolvi atendê-la, mesmo sem ficha, não por causa do presente, mas porque ela é MINHA paciente, deve ter uma doença grave e percisa de uma colonoscopia. Não tem culpa de estar faltando médico na segunda-feira. Sei até os resultados dos exames dela de cor. Quer mais? E precisava de presente?
O senhor da fratura! Esqueci do pobrezinho. E ele nem reclamou. Tanta gente reclamando da demora e ele morrendo de fome, com dor e esperando calado. Fiz o internamento, com ajuda do enfermeiro-chefe. Juro que não foi de propósito.
Internei também um rapaz de 17 anos com vômitos incoercíveis com suspeita de hepatite. Atendi uma moça que quer fazer um teste para HIV, com perda de peso, pele seca e um marido com uma amante que morreu com AIDS. Com medo pelo filhinho. Na cidade não se faz o exame. Quem me salvou foi a assistente social. A prefeitura disponibiliza um ônibus para a realização do ELISA na capital. Deus abençoe a assistente social.
Outra confusão. Um menino todo arranhado e a mãe queria que fosse imediatamente atendido enquanto eu tentava explicar que tinha muita gente, etc. Deixei-a reclamando (o menino estava andando, não sangrava) e continuei atendendo um garoto que estava esperando há uma hora com um traumatismo no ohlo. O pai dele é pilicial e nem por isso tentou usar da condição pra passar na frente. Depois foi a vez de uma senhora com o corpo “como se tivesse cheio de formiga preta” depois de tomar dipirona. E o menino na queda de bicicleta. Afinal, foram muitos arranhões e um traumatismo crânio-encefálico. Como ele não desmaiou nem vomitou, devia permanecer em observação por 12 horas. Um raio-x não descartaria um hematoma, por exemplo, mas não havia filme daquele tamanho. Como ele morava perto, e a mãe, que já estava calma e entendera a minha situação, concordou em trazê-lo de voltar a qualquer alteração. No meio desse atendimento, uma enfemeira do outro plantão (aquele de onde saí) telefonou, já estava sabendo da confusão da manhã. “Tentaram lhe bater, foi? Soube que deu até polícia”. Mundo pequeno.
Depois veio um rapaz com tosse com escarro sanguinolento há 7 meses(!), mas a principal queixa é depressão. Antes de meu colega começar o atendimento às seis da noite, ainda peguei um senhor que corteu a perna há uns dias e inflamou. Ainda bem que a antitetânica estava em dia. Prescrevi antibiótico e retirei os pontos.
Pensava eu que teria algum descanso. Qual! Entre 3 e 6 da manhã eu não preguei o olho. Toda vez que eu me deitava o enfemeiro me chamava. Acabei desistindo de fazer o ambulatório no dia seguinte, que eu ia fazer pra pagar o plantão da semana passada porque estava caindo de sono.
O bom desse plantão foi que conheci uma jornalista chamada Maria Moura, nome de personagem de livro, né?

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