Plantão da Segunda-feira
Sinceramente, não lembro de tanta coisa assim do plantão de ontem. Vi tanta gente que ficou difícil de lembrar dos casos. Finalmente tenho alguém pra dar uma força na parte da tarde. Pra variar, havia uma pilha de fichas quando cheguei e finalmente eu disse chega. Só urgências. Num instante a auxiliar deu um jeito e o povo esperou até á tarde. De fato, ficaram só urgências. De 28 pacientes atendidos, internei 12 e transferi um. Um rapaz caiu de uma moto e teve uma fratura exposta do mindinho do pé. O enfermeiro-chefe deu uma força, solicitou raio-x, encaminhou pro ortopedista. Ainda bem, porque a emergência estava fervendo. Um senhor com dor abdominal e retenção urinária. Havia sido socorrido há umas quatro horas e estava do mesmo jeito. Provável aumento de próstata: internamento para investigação. Sem falar que ficar indo e voltando de um sítio com retenção urinária pra passar uma sonda, se arriscando a uma infecção urinária não contribui em nada pra qualidade de vida.
Um senhor com tosse, falta de ar e febre há uma semana, o exame físico confirmou pneumonia e a própria filha pediu o internamento. O problema era vaga. Procura o enfermeiro-chefe. Outro senhor, esse com diabetes e com seqüela de derrame, rebelde, desses que esconde biscoito recheado e confeito pelo quarto, teve três convulsões esta semana. Estava vomitando e com febre. Iniciou estas convulsões este mês. Nada que indicasse epilepsia. Conversei com os filhos dele e admiti que era bem provável que a diabetes estivesse descontrolada por alguma infecção que as manifestações neurológicas culminassem em coma diabético. Sugeri internar para investigação. Faltava conseguir vaga.
Um rapaz de 33 anos, alcoolista assumido, com os pés inchados e cheios de bolhas, com feridas por todo o corpo. O prontuário com diversos registros semelhantes. O diagnóstico era pelagra, por desnutrição, e celulite profunda. Ficou desesperado quando falei da falta de vagas. Acho que não tem ninguém nesse mundo. Uma pessoa tão legal! De conversa fácil, já tentou o AA, sabe a Oração da Serenidade, perguntou e tentou entender o porquê das feridas. Deu vontade de ficar ali, conversando com ele. Poderia ser um amigo meu, apesar da sujeira. Estava há dias sem beber, tremendo como um doente avançado de Parkinson. Iniciei um soro com açúcar e vitaminas e prometi que faria o possível por uma vaga, até mesmo na enfermaria dos doentes crônicos.
Finalmente o enfermeiro-chefe! Sem problemas com vagas. Era só transformar em enfermaria masculina de clínica de outra ala qualquer. Graças a Deus. Porque a essa altura tinha mais uma senhora com diarréia e vômitos, outra com a pressão alta demais e um senhor com dor abdominal, constipação intestinal e retenção urinária.
Outro senhor, com tosse e expectoração branca há oito meses, falta de ar e dificuldade para engolir, sem febre, ex-fumante. Não gostei do que ouvi, principalmente no pulmão direito. Pedi um raio-x do tórax e gostei menos ainda. Decidi internar porque a possibilidade de câncer de pulmão era muito forte, mas queria descartar tuberculose. O ruim nesses casos é que você não quer apavorar o paciente mas não quer que toda a família fique na ignorância, porque é muito comum essas criaturas ficaram andando pra lá e pra cá sem que os médicos criem coragem de contar a verdade e eu geralmente não vejo mais esses pacientes. O que acho de uma omissão e covardia absurdas. Portanto, sempre avalio a situação. Se acho que o paciente tem equilíbrio suficiente, se a chance é muito grande, deixo claro que não tenho certeza com apenas uma consulta numa emergência, mas que a suspeita existe e que é melhor investigar, que é melhor um susto do que ignorar um aviso prévio. Se não dá pra falar direto com o paciente, dou um jeito de falar com o acompanhante sem que o paciente perceba. A melhor maneira é quando o paciente vai ser medicado. Sem dá pra afastar o acompanhante um instante e conversar um pouco. O que não dá é ser omisso. Naquele caso, falei com a filha do paciente.
Mais gente com diarréia e vômitos, aliás, deve ser outro surto de rotavírus. Um rapaz de 14 anos com dor abdominal há 3 dias, febre e vômitos há 12 horas, o exame clínico revelou dor em fossa ilíaca direita (pé da barriga). Provável apendicite. Na falta de um laboratório, encaminhei para a cidade vizinha, que tem laboratório e cirurgião (o diagnóstico de apendicite é feito pela história clínica, exame físico e hemograma sugestivo de infecção). Pois não é que o rapaz voltou, sem qualquer bilhete, com o recado verbal do cirurgião que dizia mais ou menos o seguinte: o rapaz não tinha febre (estava com 38,5ºC quando examinei) nem dor importante (havia tomado uma dose pequena de dipirona antes de pegar a estrada, como recomenda qualquer manual de cirurgia, que dá conforto pro paciente devido aos trancos da estrada, não interfere no exame físico e se a dor é muito forte vai voltar independente de uma dose tão fraca) e que no dia seguinte ele faria uma ultrassonografia pra tirar a dúvida porque estaria de plantão no meu serviço. Não tinha feito hemograma. Detalhe: 60% das apendicites não aparecem nas ultrassonografias. Eu acho que alguém está desaprendendo. Internei o rapaz na cirurgia pro colega avaliar no dia seguinte.
O rapaz da fratura exposta voltou. O ortopedista mandou suturar e encaminhou para o ambulatório hoje. Um rapaz superlegal. Lamentando que já é o segundo ano que se machuca perto do São João e não pode dançar quadrilha. Já passava de duas da tarde quando minha colega chegou e pude ir almoçar. Depois voltei pra terminar os internamentos.
O berçário estava cheio, com todo mundo esperando pra ter alta. Só tem alta o recém-nascido com classificação sanguínea e exame de sífilis negativo. Incompatilidade sanguínea pode dar icterícia (pele e olhos amarelos), que pode dar retardamento mental. Difícil é convencer a mãe que o menino não vai ter alta só porque está amarelo e tem que ficar num berço iluminado (a luz degrada a bilirrubina, que dá a cor amarela à pele), apesar o bom estado geral. Tem gente que diz que vai assinar termo de responsabilidade, que o marido vai tirar a criança à força, etc. Na verdade, ninguém tira uma criança do hospital sem ordem médica. A tutela é do Estado. Qualquer problema, chama-se o Conselho tutelar. A gente nem bate mais boca. Havia uns dez bebês e nada dos exames. Estava terminado quando houve um parto (o menino se apressou e tive que cortar a mãe antes que a parteira terminasse de colocar as luvas). Quando já estava preenchendo a ficha (teve uma cesárea na mesma hora e a auxiliar deu uma ajuda), a enfermeira da Pediatria chega na Maternidade com essa; doutora, quando é que a senhora vai ver os meninos lá de baixo?
Ninguém havia me avisado que metade dos meninos da Pediatria seria vista por mim. Aliás, nem que eu soubesse teria chegado lá mais cedo. Eram quase seis da tarde e faltavam uns 15 meninos. Vamos lá. Quando eu terminei de LER as quinze fichas (pra conhecer os casos antes de examinar os pacientes), chegaram os exames dos bebês. Pára tudo (para maior aborrecimento das mães da Pediatria que já havia esperado o dia inteiro) pra dar alta pros recém-nascidos. Até terminar todo mundo, as oito horas vieram e eu disse adeus, intimamente, ao Jornal Nacional, ao William e à Fátima. Tive pena especialmente de dois garotinhos. Um, com glomerulonefrite, uma inflamação nos rins, que sobe a pressão, que indica dieta sem sal e repouso, e outro, com febre reumática, tomando benzetacil todo dia e fazendo repouso também.
Finalmente jantar. Que dizer, antes, a acompanhante daquele senhor com constipação intestinal e retenção urinária disse que ele continuava com dor. Após a lavagem intestinal, não tive tempo de reexaminar o abdome do paciente (falha minha) e a sondagem da bexiga revelou pouca urina. O terceiro colega do plantão e o enfermeiro-chefe acharam que era uma hérnia encarcerada. Provavelmente, ele tinha uma hérnia (que não percebi devido ao abdome cheio de fezes) e o esforço para evacuar estrangulou a hérnia. A retenção urinária era coincidência. Conclusão: se um paciente persiste com queixa após algum tratamento, reavalie, pense em outra hipótese, considere se você não errou. Eu errei. O paciente foi pra Recife e está bem. Ainda bem.
Até que o horário da madrugada foi tranqüilo. Um cara com mal-estar no peito, pressão alta e bebendo há dois dias sem parar. Uma senhora com pressão alta. Essas coisas.
Quá-quá-quá. Disse que não lembrava de tanta coisa.
quarta-feira, maio 11, 2005
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