sábado, janeiro 17, 2004

Programa de Saúde da Família: uma vocação


sabe, comecei a escrever diariamente desde que comecei neste novo posto e estou me dando conta que é uma leitura interessante. Eu não me obrigaria a escrever diariamente se fosse apenas um diário. Como tenho que dar notícias, o registro diário de atividades tornou-se uma tarefa de avaliação das ações no PSF.

Como ontem fiz o reconhecimento a área próxima ao posto, hoje fui para a área mais distante, de diferença gritante com a outra.
Favelas, casas de taipa, barro, muito barro. "Ruas" que são verdadeiros atoleiros. Não há muros, nem calçamento,nem rede elétrica, de água ou esgoto. Isso não me assustou. Conheço as condições, cresci vendo-as em minhas férias escolares, visitando meus parentes. O que assustou foi ver como estou fora de forma.
fui caminhando para o posto, um quilômetro, sei sequer cansar. As coisas mudaram quando peguei a bicicleta de um dos três agentes que saíram comigo. havia uns seis ou sete anos que eu não andava de bicicleta. dizem que a gente nunca esquece. Mas também não esquece que ERA mais magra, NÃO TINHA uma labirintite e está destreinada.
Bom, eu não andei nem um quilômetro e estava morta de cansaço. E a cada vez que freava perdia o equilíbrio. Acabei de carona na bicicleta do agente, senão não chegaríamos lá em tempo.
Uma vez que a área é mais distante, íamos fazer o reconhecimento da área (mapear, identificar locaís críticos, focos de endemias) e aproveitar para ver quatro ou cinco pacientes que não tinham condições de chegar ao posto.

Na primeira casa, de taipa, na Favela da Fumaça, havia uma senhora diabética, hipertensa e com feridas nas pernas havia meses. Quase não enxerga, devido à diabetes, mas perfeitamente consciente. Moram ela a filha e os netos num cômodo de paredes de taipa e chão batido. Tudo varrido, sem sujeira, a rede da doente limpa embora velha e desbotada. As próprias lesões estavam limpas, com remédio. A medicação da pressão já havia sido tomada pela manhã. ela sabia onde estava guardada. Não tomava remédio pra diabetes porque tinha que fazer um exame pra saber a taxa de glicose no sangue, solicitado pela médica anterior.

A tecnologia ajuda. A verdadeira tecnologia não é complicada e nem exige profundo conhecimento do usuário. A balança da Pastoral da criança é um bom exemplo. parece aquela balança que o vendedor de peixe, frutas, verduras, usa na mão. A diferença é que usa-se um viga do telhado pra apoiar a balança e coloca-se o menino num saco de pano. Barato e eficiente. Imagine uma balança de coluna. Não chegaria jamais em todos os lugares.

A tecnologia me ajudou hoje. Existe uma máquina , menor que a de calcular, que mede a glicose do sangue. Vc coloca uma fita na fenda, fura o dedo do paciente e pinga na fita. Em um minuto sai o resultado. É uma máquina cara, uns trezentos reais, mas sai mais barata que o município providenciar um transporte para a coleta do sangue e gastar com uma máquina ainda mais cara para fazer a mesma dosagem. Nos EUA os pacientes têm cada qual sua máquina e usam diariamente, poruqe sai mais barato que ser internado com complicações do diabetes. Usei a máquina e imediatamente soube que o açúcar estava alto demais, do mesmo modo que soube que a pressão estava alta (mesmo com a medicação) usando o tensiômetro. Isso permitiu escolher na hora o tratamento, ajustar doses, orientar o curativo (que demora a cicatrizar devido à diabetes descontrolada). permitiu a certeza que a família, embora paupérrima ( a outra filha é pedinte e vende parte da comida que ganha pra comprar os remédios da mãe), tem muito cuidado com aquela senhora. Ela poderá ter, ao menos, a medicação de graça porque registramos a quantidade necessária de medicações para TODOS os hipertensos e diabéticos daquela área.

Quase vizinha mora outra fam´lia, que está muito bem, obrigada. Mas estão preocupados. Na casa-quarto-cozinha, a filha da casa teve que ser operada há três anos e não pode ter filhos. Aqueles que não têm repartiram o pouco que havia e adotaram um recém-nascido há dois meses. A preocupação é que esta semana a mãe adotiva descobriu que TEM LEITE. Não tomou remédio, não fez tratamento. todos temiam que o leite fizesse mal à criança. Pudemos explicar então que assim como o leite seca se a mãe se angustia ou se estressa, ele "descerá" em casos de intenso estímulo maternal, ainda que não haja gravidez. Já vi isso antes. Aproveitamos para ensinar a técnica correta , estimular o aleitamento exclusivo, blá,blá,blá. Sem falar na economia.

Uma vez que um agente viu o risco que corria a primeira senhora, pediu que parássemos em outra casa para vermos outro diabético, também com feridas na perna. Que diferença! A casa também de taipa e chão nu, estava cheia de lixo e moscas. a rede do doente, imunda. Um trapo ainda mais sujo cobria o pé ferido. O doente estava só, a esposa saíra. Não usava qualquer medicação além "de uns chá de mato" que não soube identificar. O cheiro era tão pútrido que apenas eu permaneci para examinar. estava diante do pior "pé diabético" que já vi e provavelmente não verei outro pior. A indicação cirúrgica era imediata, além do controle da glicemia que estava em 443 mg/dl.

Investigando com os vizinhos, soube que ele sofre maus tratos da esposa, que o agente de saúde havia oferecido uma ambulância para remoção há 15 dias, que foi veementemente recusada. não me sairia muito melhor não fosse a "inverdade" de dizer-lhe que queria apenas que ele fizesse um curativo na urgência e medicação para controlar a glicemia. "Eu venho mas volto ainda hoje", "O senhor vem mas volta, claro". Não disse que não seria hoje, não disse que não voltaria inteiro, não sei se voltará vivo.

Retornamos ao posto, solicitamos um carro, retornamos Apenas para encontrar a tal criatura, a esposa dele, que disse que não internasse que ela não iria lá, nem tinha família pra ficar com ele, nem como pagar um transporte de volta. "Ele vai, é examinado pelo médico do plantão, é medicado, faz um curativo e volta" (não disse que seria hoje).

Quis o destino que a médica plantonista fosse endocrinologista. Provavelmente se interessará pelo caso. Saberemos amanhã já que o hospital é da nossa área, e é a referência para casos graves.

O cheiro ainda está comigo apesar de dois banhos e perfume. Apesar do bolo e refrigerante oferecidos na despedida da médica que substituo. Apesar do suor da caminhada de ida e volta do posto para casa.

Quis Deus que eu fosse, de qualquer jeito, cansada, esbaforida, com cólicas de ovulação, até àquele homem. Deus me deu coragem,e paciência, para enfrentar aquela mulher que não se importa de se viverá ou não. Que me chamou de "mulher" com o dedo em riste, ao que eu pedi, firmemente, que me tratasse de "doutora" devido à minha pouca idade. As testemunhas que tive foram várias, principalmente porque os vizinhos todos vieram ver "aquilo", que já foi um pé.

Vamos rezar. Por mim e por ele.

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